Agenda Paroquial:

terça-feira, 28 de maio de 2013

Tá na moda o diabo...

"Se Jesus fala de demónios e eles não existem, enganou-nos"


Por estes dias, regressou um velho argumento sobre a existência real de demónios (enquanto seres sobrenaturais que por vezes possuem pessoas e depois são expulsos por exorcismos). Digo regressou porque já por cá andou há um ano. E regressou num ou noutro comentário  de entradas recentes neste blogue, tal como nas mensagens privadas do meu espaço no Facebook. É de lá que retiro as seguintes frases, sem dizer quem é o autor. Ele poderia ter escrito no blogue, mas preferiu o recato do FB e por isso não digo o seu nome.
Cristo expulsou demónios. Está em todos os evangelhos. Os apóstolos fizeram o mesmo. Está nos Actos dos Apóstolos. Também nega isso tudo? Ou Cristo (que é Deus, nisso concordamos) desconhecia factos clínicos psicológicos, inacessíveis à ciência da época? Os apóstolos, coitados, ainda vá lá: poderiam desconhecer as diferenças entre doenças psicológicas e possessões. Agora, Deus? Cristo não consegue ver a diferença entre epilepsia e possessão? E, já agora, Cristo não podia ter sido mais claro, e ter dito que o Diabo não existia? É que Cristo, ao falar sobre o Diabo como se ele existisse, acaba por nos baralhar...
Resumiria assim o que está acima: Jesus Cristo sabe tudo e não engana ninguém (ou não seria Deus). Jesus Cristo expulsou demónios, como os evangelhos atestam. Logo, eles existem, pois Jesus não quereria induzir-nos em erro.

Em parte, estas questões já aqui foram abordadas. Primeiro, nos evangelhos, Jesus expulsa demónios (e não o diabo – são distintos) pela força da palavra e não por sortilégios (como faziam outros) no contexto do anúncio da soberania absoluta de Deus (reinado de Deus); depois, é possível interpretar as possessões como doenças do foro psíquico e, mais do que isso, vitimizações num contexto social opressor. Diz um autor, em parte afastando-se da ideia das doenças, que as possessões eram uma estratégia complexa utilizada de maneira mórbida por pessoas oprimidas para se defenderem de uma situação insuportável. Vale a pena ler e reler o texto (aquirefiro-me às páginas digitalizadas). No final, com aquela interpretação, sinto que os evangelhos são ainda mais reais e significativos para aqueles tempos e os tempos de hoje.

A linha de fundo do argumento “não podia enganar-nos” repousa na convicção de que Jesus, sendo Deus, sabe tudo; ou, sendo Deus, não pode mentir, errar, enganar.

Há aqui três questões subjacentes. Aponto: a) O que é Jesus ser Deus? (podemos ter entendimentos diferentes sobre isto); b) Estar errado é pecado? (julgo que todos concordamos que não) c) Podemos dizer que mente ou erra quem pensa de acordo com as conceções do seu tempo, se estas mais tarde mudam? (julgo que todos concordamos no não).

Fica-se com a ideia, obviamente inaceitável para um crente, de que se Jesus falou de demónios e eles não existem, enganou-nos, esquecendo que mentira (e erro moral) seria se Jesus soubesse uma coisa e dissesse algo deliberadamente diferente (alguns dizem: “Sendo Deus, tinha de saber”; nós dizemos: “Não tinha, não”). Mas se pensava de acordo com as conceções culturais do tempo (e temos muitos motivos para pensar que sim), não é mentir dizer algo que não corresponde ao que em fase posterior é tido por verdade. Jesus diz que o grão de mostarda é a semente mais pequena. Talvez pensasse mesmo que é. Fala do sinal de Jonas. Como qualquer judeu da época, pensava num Jonas real e não numa figura literária. Diz que “o princípio não foi assim”, ao falar do divórcio. Certamente pensaria num Adão e Eva reais, como aparecem nas primeiras páginas da Bíblia. E os exemplos poderiam continuar.

Desconfio que o tipo de teologia que nega a comunhão de Jesus com os conhecimentos do tempo desconhece o significado da kenose de Jesus, do abaixamento, do fazer-se humano, do caminhar com os contemporâneos.

Desconhece, certamente o que Bento XVI escreveu no livro sobre a infância de Jesus:
É verdade também que a sua sabedoria cresce. Enquanto homem, Jesus não vive numa omnisciência abstrata, mas está enraizado numa história concreta, num lugar e num tempo, nas várias fases da vida humana, e de tudo isto toma forma concreta o seu saber. Manifesta-se aqui, de modo muito claro, que Ele pensou e aprendeu de maneira humana.
Ele pensou e aprendeu de maneira humana.

Com isto chego finalmente ao que me moveu a escrever isto. Relendo um livro de Carlos González Vallés, dei com a página que condiz com as cristologias do Jesus que sabia tudo mesmo tudo. Quando a mim, padecem, como noutra altura já escrevei, de uma espécie de docetismo gnoseológico.

O jesuíta cita gigantes da teologia (Santo Hilário: “Jesus comia e bebia, não porque precisasse de fazê-lo, mas tão-somente para que não se surpreendessem os que viviam com ele”; São Cirilo de Alexandria: “Jesus sabia tudo desde seu berço, mas aparentava ir-se inteirando das coisas para dissimular”; Santo Atanásio: “Jesus nunca pôde adoecer nem envelhecer”; os salmanticenses: “Jesus foi de facto desde o princípio, e não apenas em potência como possibilidade futura, o maior filósofo, matemático, pintor, navegador… jamais existente” [esta faz lembrar os ditadores norte-coreanos]) e seguir fala da sua experiência:
Eu ouvi dizer em sermões que Jesus, desde o berço em Belém, poderia ter contado à Mãe tudo o que lhe aconteceria na vida; que podia ter falado com os Reis Magos na língua destes; que quando o Evangelho diz que «se surpreendeu» diante da fé do centurião, isso não passava de um gesto condescendente de Jesus, que na realidade não podia «surpreender-se» com nada, já que conhecia tudo; que, quando perguntou ao cego: «O que quer que eu faço por você?», esta era uma simples pergunta teórica, já que Jesus sabia sempre o que cada um pensava e queria; que, quando rezava era sói para dar bom exemplo aos discípulos, uma vez que ele, sendo Deus não precisava de oração; que, se dormia na barca, não era por cansaço físico, mas para testar a fé dos apóstolos; e que, se gritou na cruz: “Por que me abandonaste?”, não foi por sofrimento pessoal, mas como consolo para os nossos.
Como ficamos em relação aos demónios? Repito Bento XVI: “Ele [Jesus Cristo] pensou e aprendeu de maneira humana”.